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ExCompanhia de Teatro

 

Entre a realidade e o inconsciente de ser artista

por ruy filho

fotos patricia cividanes

 

Foi por aí que nos conhecemos. Entre amigos. Por acaso. Logo, os encontros se tornaram mais constantes. Até então, novos amigos que também faziam teatro. E como são muitos assim, tudo bem. Sabíamos dos interesses uns dos outros, principalmente por arte, e seguimos próximos. Eu e essa minha dificuldade em misturar as coisas. Surgiu nesse tempo a Antro Positivo. Eles a liam, comentávamos, e continuamos com boas conversas sobre um pouco de tudo, limitados às curiosidades rotineiras. Então recebo a divulgação de um espetáculo, cujo mote me chamou atenção. Coisa cada vez mais rara, confesso. Era tão fora da produção recorrente, tão alucinada e inventiva, arriscada em como se apropriava do contemporâneo, que me levou a perceber os mesmos amigos sob a forma de artistas. Descobri que poucos abordam o fazer teatral de maneira tão inquieta e propositiva como a ExCompanhia de Teatro. E veio a vontade de entendê-los mais. No MASP, eu, Gustavo e Bernardo nos embriagamos de café por duas horas. Levamos muitos anos para que esse momento acontecesse. E foi incrível.

 

É preciso começar pelo óbvio: o fato de serem dois. Ou seja, duas pessoas com interesses e olhares específicos criando os mesmos trabalhos, com tudo de positivo e problemático que isso acarreta. Para Bernardo, criar em dupla é sempre muito complicado. São muitos pontos de vistas sobre cada possibilidade, e as escolhas ainda se desdobram em novas abordagens. O leque de proposta se multiplica exponencialmente. O importante, portanto, não são apenas as questões, mas manter-se aberto ao consenso, explica. Para Gustavo, essa maneira de criar provocou-lhe mais maturidade no trabalho ao exigir a defesa e desconfiança daquilo que se oferece, e abertura ao entendimento mais profundo do oferecido. Ao fim, os trabalhos demandam tantas investigações e reflexões que, após prever sua realização, não dá mais para ser abandonado, comentam. É preciso fazê-lo, resume Bernardo. Os trabalhos tomam antes a forma de desejos surgidos em inquietações pessoais que se descobrem mútuas, e uma vez reconhecidos passam de fato a existirem como projetos. Não significa dizer estar tudo resolvido. Faltam-lhes as estruturas e mecanismos para efetivarem as criações. Por isso, inventam, subvertem, fazem acontecer sem abrir mão dos desejos mais audaciosos, estética e conceitualmente.

 

Pode parecer, à primeira vista, a mesma dinâmica de qualquer grupo de teatro sem estrutura, apoio ou financiamento. Mas existe neles um diferencial. Enquanto a maioria dos grupos confrontam as faltas com tentativas de conquistar as soluções aos meios idealizados, a ExCompanhia reinventa o fazer para não necessitar dessas mesmas condições. Foi assim que me chegou o primeiro trabalho com qual tive contato: pelo facebook. Não por ser uma divulgação como tantas outras. Mas por ser ele mesmo o espetáculo. Uma narrativa iniciada nas redes sociais, estendida ao contato real individual com os espectadores e finalizada em uma ambiência cênica específica que desse conta da complexidade desse trajeto, compreendendo as singularidades das experiências de cada espectador, levando a todos à mesma conclusão. O trabalho em si, Eu Negociando Sentidos. Avançamos a conversa até ele. Antes, um pouco sobre o início.

 

A ExCompanhia de Teatro começa com um grupo de estudos. Foi ali que um dos grandes dilemas das artes cênicas se colocou provocativo, questionar o teatro como um espaço de exibição. Problematizar a separação entre o palco propositor e a plateia passiva pode correr alguns riscos. Muitos se voltam a isso e acabam por fortalecer certo estereótipo de participatividade tão construído nas décadas passadas, aonde o espectador é incluído ao espetáculo, mas sem muito acrescentar como código narrativo e simbólico. Para Gustavo e Bernardo as respostas surgiram por outras proposições, na complementariedade de outra importante questão, por que a experiência do teatro não é tão valorizada? Ao somarem as duas perguntas, compreenderam não ser suficiente ter o público em cena, mas ser ele a própria cena. Provocando a inversão, a ExCompanhia passou a invadir o universo seguro do espectador para levar à sua realidade o teatro. Nesse processo nada simples, dois estímulos foram fundamentais. O primeiro, a passagem de ambos pelo Teatro do Centro da Terra, onde trabalharam com o diretor Ricardo Karman e o performer Otávio Donasci. O segundo, o espetáculo Palhaços, com Dagoberto Feliz e Danilo Grangheia, e direção de Gabriel Carmona. De Ricardo e Donasci as pesquisas sobre arte-tecnologia e limites expandidos da narrativa cênica; de Palhaços, a maneira como a simplicidade foi capaz de os tocar. Assim, pode-se dizer que a ExCompanhia surge ao se perguntar como incluir o público na narrativa, através de experiências cênicas poéticas e tecnológicas, que busquem dialogar e interferir no reconhecimento do zeitgeist, o espírito da época, em seus aspectos intelectuais, estéticos e éticos, segundo os alemães. E assim resolver a falta de interesse pela experiência teatral que tanto atinge a todos nós.

 

Feitas as perguntas certas, foi preciso escolher as respostas. A mais inquieta, e por isso mesmo especial, revelou-se como sendo a possibilidade do teatro criar experiências de imersão ao espectador, potencias poéticas fortes. Pessoalizar a experiência, portanto. Porque não lhes interessa tratar o outro como fileira a, b ou c, explica Bernardo. Assim, o espectador deixa de ser apenas alguém ocupando um espaço para existir como presença e personalidade determinantes ao espetáculo. Essa radicalidade impõe rever o olhar sobre a narrativa em três de seus aspectos: conteúdo, pessoa e lugar. Para tanto, a experiência necessita ter o sentido de ser da forma que se propõe ao outro, resume Gustavo. Significa dizer, encontrar no contemporâneo quais os trajetos de existência, e não apenas quem ainda são as pessoas. Sem se afastarem dos cânones tradicionais do teatro, personagens, dramaturgia, preparação de atores etc., a ExCompanhia investe principalmente no que denomina por potência de presença. Em outras palavras, na radicalidade da imersão do encontro com aquele entendido por outro e não mais mero espectador. Para Gustavo, quando se vê pelo prisma da exposição, perde-se a ideia da presença do público, pois tudo que está exposto assim o está em ambos os lados. Ao não mais diferenciar os envolvidos, tudo torna-se virtualmente narrativo. Aqui se dá o salto em questão para o interior do zeitgeist. O movimento preciso de reconhecimento do trajeto que realizamos no presente; a aceitação filosófica da presença determinista ao ser de sua face virtual. Então foram atrás desses novos serem. Eu Negociando Sentidos surgiu na aproximação exatamente dessa nova realidade de existir.

 

A perspectiva de ficcionar o real dialoga em Eu Negociando Sentidos com o falso contraponto da realidade do virtual, acompanhando a condição cada vez mais explícita de não haver oposição entre tais abordagens, e sim complementariedade. Ao seu modo, o trabalho provoca a intersecção entre a possibilidade e a concretude da narrativa, compreendida pela subjetiva sensação de teatralização de ambas. Para Gustavo, ao se perguntarem como as pessoas acabam comprando as coisas como verdades, perceberam o quanto tudo hoje acaba ficcionado, desde a tevê, os noticiários, a política, e também o teatro. Assim, o virtual se confunde real, e parece plausível de existência. Então, explica, no convívio virtual, seja em Eu Negociando Sentidos entre personagens reais e ficcionais, seja na relação com a cidade como personagem em Jornada, espetáculo experiência em áudio binaural, a pessoa age e reage virtualmente. Isso não é pouca coisa. Significa a linguagem se valer cada mais de sua virtualidade, provocando a consequência de não mais haver consequências reais. Para Gustavo, esse é um dos estímulos à necessidade do indivíduo “falar”, pois a expressão, seja qual for, comprova, ainda que virtualmente, a presença, o existir. Por isso os trabalhos da ExCompanhia possuem sempre um tanto de metalinguagem, conclui Bernardo; cabe também ao teatro compreender sua manifestação no contemporâneo como linguagem virtualizada, onde a cena não se valida mais somente pelo acontecimento cênico, mas pela experiência no convívio com ele. Ao trazerem ao cotidiano a ficção como matéria narrativa do real possível, Gustavo e Bernardo se aproximam do que Gilles Lipovetsky e Jean Serroy definiram como Era Transestéticas ou Sociedade do Hiperespetáculo.

 

Segundo Lipovetsky e Serroy, no tempo do mercado de consumo, também o capitalismo se adaptou, e precisou se apropriar mais da arte e da estética. Esse Capitalismo Artista, como denominam, artealiza o domínio da vida cotidiana no exato momento em que a arte contemporânea se empenha em um vasto processo de desdefinição. O mundo, portanto, faz-se outro. Agora é transestético. Assim, essa hiperarte funciona como estratégia de marketing, jogos de sedução para captar os desejos do neoconsumidor. Os dois filósofos explicam, ainda, funcionar o Capitalismo Artista pelo cruzamento, sobreposição dos domínios e gêneros. Constrói uma cultura com a característica de implantar-se sob o signo hiperbólico do espetáculo, da diversão de massa. O que diferencia a sociedade do espetáculo guybordiana - na qual o indivíduo era submetido pela alienação, passividade, separação, falsificação, empobrecimento e despojamento -, da hiperespetáculo consequente ao capitalismo criativo transestético são sedução, excesso, diversidade, reflexividade, entretenimento sem fronteira. Por fim, concluem, o indivíduo hipermoderno não quer mais apenas o virtual, quer o live. 

 

É nesse novo contexto de pertencimento e participatidade que a ExCompanhia se colocação em ação. E a forma mais própria a essa ampliação da experiência está no assumir o teatro como amplitude de encontro sem se aprisionar às formas tradicionais. Buscando formas que dessem conta disso, o site specific respondeu de maneira direta. Para Gustavo, um site specific exige ao artista criar a plenitude da obra. Se o cara cria tudo o que está no palco, cria potência, portanto a peça irá funcionar, explica; pois nele tudo faz sentido, até no como se utiliza a cidade. Bernardo completa o pensamento, o encontro com uma peça começa antes, na escolha ainda no guia de programação.

 

Se o teatro não tem risco, não interessa ao espectador, diz Gustavo. É importante oferecer ao espectador a sensação de que o espetáculo pode dar errado. É o que Bernardo chama por expectativa do imprevisível. Já Gustavo afirma que tirar o risco da zona de conforto é fundamental. Ou seja, tornar o risco algo eminente, plausível e insolúvel. Para tanto, os dois procuram criar nos espetáculos níveis de interação. Um exemplo, relata Gustavo, é o espectador estar tão emocional e narrativamente envolvido a ponto de chegar a esquecer ter entrado em uma peça e querer bater no ator. Isso me leva às inquietações mais pragmáticas. Se os trabalhos provocam e conquistam esse nível de deslocamento do real e do ficcional, à ponto do espectador se desperceber como tal, como o teatro sobrevive como linguagem a ser experienciada, já que toda experiência demanda minimamente o seu reconhecimento para ser criticamente percebida e absorvida, e como lidar com o pós-espetáculo, uma vez que, ao termino, a experiência narrativa permanece contínua ao viver? Antes de responderem esses últimos pontos, reabastecemos nossas xícaras de café, enquanto aproveito para abraçar um amigo que reencontrara no MASP.

 

Gustavo explica nunca se preocuparem, durante as criações, em fazer espetáculos teatrais exatamente, mas em linguagens, utilizando-se para tanto quaisquer plataformas, seja uma casa real, o facebook, a cidade narrada em fones, o que for. No entanto, explica, permanece a necessidade do “teatro” junto ao nome da companhia. Viemos do teatro e aqui estamos, ao mesmo tempo em que é uma companhia de teatro, ela não é, diz. O fato de não realizarem intersecções com a realidade nos moldes estabelecidos na década de 1960, em processos mais formalistas ou tradicionais, está no entendimento desses perderem potência poética. Augusto Boal, por exemplo, se torna quase uma pegadinha ao espectador, quando esse descobre estar dentro de uma cena realizada em uma situação cotidiana banal. Então é preciso esclarecer, desde sempre, ser teatro, e com isso conduzir o espectador a outro lugar, e não apenas ao da participação. O convite, obviamente, conduz o interessado a um mergulho mais profundo e radical à criação, ao ponto de ser complicado separar realidade e arte. Mas a experiência é sempre mediada de alguma maneira, explica Bernardo. Existe a preocupação em sempre lembrar ser teatro, de modo que o pós é feito e plantado no espectador antes mesmo do início. Ao passar por toda a narrativa, ele entenderá o quanto naquilo foi dele, do processo, dos artistas e da realidade. Só assim, diz Bernardo, deixaremos espaços abertos para criarmos neles o limiar da ficção.

 

Uma companhia jovem, recente, de olho no presente com a inquietação de compreender e evoluir por dentro dos futuros possíveis. Assim é possível distinguir a ExCompanhia de Teatro e sua busca por poéticas singulares, nas quais o teatro é tratado novamente como jogo a partir da existência do outro e sua realidade narrativa. Artistas inquietos, divertidos, sérios, profundos e românticos. Artistas que acreditam na possibilidade da arte ser a maneira mais profunda e bela de transformação de todos nós. Exatamente o que os trabalhos recentes revelam. Basta acompanhar o facebook ou sair pela cidade e as coisas não serão mais as mesmas.

 

Na virtualidade de nossas personas fabricas e na realidade de nossos corpos presos ao cotidiano, a ExCompanhia conquistou meios próprios para invadir e intervir. O teatro muda. As pessoas mudam. E parece que o futuro chegou sem exageros mergulhado em profundos e radicais oceanos de poesia. Tendo uma chance, gostaria de levar Lipovetsky e Serroy para viver uma dessas deliciosas experiências da ExCompanhia de Teatro. Quem sabe.

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